quarta-feira, 20 de julho de 2011

A justiça da sociedade menos imperfeita

A justiça menos imperfeita de todas é a do homem que prescinde de todo o poder excepto o da autodefesa. Logo, a sociedade menos imperfeita de todas é a formada por homens assim.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Senhora da vida


Sou filho da viagem e da estrada,
Do sal atlântico que rasga as gretas no pasmo arenado do nosso impreparo.
Em todas as terras vi.
E de todas as fontes ouvi o chilrear de cantos antigos, e lhes bebi a minha essência gémea.

Sou filho das feridas profundas,
Do rúbro grito que abraçou o estilete de granito em queda, e o marcou como marcado eu era.
De toda a luz me fiz.
E a todas as eras perguntei por esta vontade, respondendo-me na expressão cérea do tempo a imortalidade.

Sou filho da terra.
Regresso-te, recolho-me e me acouto no teu colo, e na osmose do ritual que compomos não se tresmalham as almas destes corpos nómadas.
De todos os deuses te quis.
E a todas as fronteiras lançarei o impulso fértil, a celebração da tua maternidade, até em riste expirar.

Na rosa dos ventos de uma consciência tão vasta, como vasto é o nosso alcance, deixo-me fluir,
Pois em cada átomo e em cada vontade que te ofereço, em todo o sopro vital que me sustenta, encontro-te.
E em nenhum me perco, porque no fim, como no princípio, percorrida a nossa história em todas as eras, és em minha vida meu querer,
E na tua sou eu minha entrega.




Rui Santos Silva
Porto, 16 de Agosto de 2009

sábado, 14 de agosto de 2010

Os miseráveis

Discute-se a possibilidade de se transformarem pessoas individuais beneficiárias de apoios do estado em prestadores de trabalho socialmente útil. Até aqui parece uma ideia inofensiva. Mas pode-se tentar ver para além disso, recorrendo a exemplos que uma criança compreenda:
Se a ideia se concretizasse, quem fosse pessoa individual e beneficiária (por estar, por exemplo, sem trabalhar e sem direito a subsídio de desemprego) ficaria com obrigações que, sendo de todos, apenas seriam executadas por quem estivesse abrangido por um estatuto de subalternidade social, eventualmente encurralável numa perversa lógica que poderia servir para instituir novas formas de escravidão remunerada. Seria o caminho que conduziria informalmente ao estabelecimento do estatuto de cidadão de segunda que, encurralado pelo "direito" a ser ajudado pela sociedade onde não consegue ter um papel produtivo (vamos assumir que os beneficiários não são todos malandros, apesar de haver destes últimos abundantemente), ficaria preso num ciclo de dependência subalterna e subserviente.
A essa subalternidade de raiz moral está subjacente a mesma lógica que levou, desde sempre, a dona de casa (sou filho de uma mulher que foi educada para "escorraçar da cozinha, a toque de rolo de massa", marido ou filho que quisessem meter mão nas suas panelas, pelo que convivi desde que nasci com uma mulher que se auto-atribuiu estoicamente o dever de ser escrava desse desígnio) a ficar condenada a executar as tarefas que, sendo eticamente executáveis por todos os membros do lar, estavam moralmente reservadas ao "sexo fraco".
Defender o património de todos é uma obrigação de todos, e não apenas dos que não têm poder ou estatuto. Quem puder limpar a floresta deve faze-lo. Somente isso. Todos o devem fazer, e não apenas os desempregados ou os socialmente fragilizados (em vez do "sexo fraco" teríamos o "cidadão fraco"). O que foi a recente iniciativa "Limpar Portugal" senão isso? - http://www.limparportugal.org/
É óbvio que quem está desempregado e a ser apoiado, e disponha de tempo que literalmente não empregue, deverá sentir-se mais obrigado a colaborar (era o que eu sentiria), mas por uma questão de disponibilidade pessoal e vontade patriótica - amor à terra -, e não por uma questão de sentido de retribuição, pois se é verdade que um indivíduo pode contar com o apoio da sociedade quando necessita, também é verdade que contribui para o financiamento do estado (não só da segurança social) quando trabalha.
Em tempos de crise, era o que faltava utilizar a falência do modelo económico ocidental para criar estratos que dividam os cidadãos. Isso não é justo, tampouco patriótico. É um pensamento cínico, indigno do patriotismo que provém de valores nobres. Um líder vai à frente, assume a iniciativa, a fazer e não só a mandar fazer, muito menos a empurrar para a linha da frente os peões sacrificáveis da sociedade, tornando-os no combustível de um modelo social de transição. Procura soluções e não culpados (nomeadamente soluções que passem pela regeneração da capacidade industrial e agrícola do nosso país).
Todos somos diferentes, com características diferentes e capacidades diferentes, mas não somos mais humanos uns do que outros. O sangue que lidera não deve servir para subjugar o seu patrício, mas para lhe mostrar o caminho e o modo, o inspirar. Pois só a inspiração, o orgulho e a vontade assim cultivada tornam um povo na seiva da sua civilização. Nisto consiste a nobreza, e não numa forma suavemente sofisticada de despotismo. O miserabilismo persecutório que lemos pela pena de Victor Hugo (em "Os Miseráveis") não fomenta virtuosismo patriótico, mas o recalcamento calado do sentimento que nasce da injustiça. Não gera vontade, mas mágoa. Dizia ainda o referido escritor: "Aceito, assim, as grandes necessidades, mas somente sob uma condição: que sejam a confirmação dos princípios e não o seu desrespeito."

Sejamos honestos: o território é de todos, logo, mante-lo é obrigação de todos. Por ordem de disponibilidade voluntariosa, e não de estatuto. Chegará certamente como castigo a vergonha de quem pode e não faz.

Quanto à participação das forças armadas, julgo ser óbvio que proteger a nação e o seu território inclui protege-lo de todo o tipo de ameaças, incluindo a do fogo. Assim entendi o juramento que fiz perante a bandeira nacional quando cumpri o meu serviço militar.
A participação das forças armadas no combate aos fogos devia ser massiva, e não tímida.

Por último, respeito as pessoas que têm opinião contrária à minha, desde que a manifestem frontalmente, em contexto de abertura e boa-vontade. Não respeito quem se dedica cobardemente, no asco da conspiração, recrutando "paus-mandados para toda a colher", a minar a vida e a credibilidade de quem produz uma outra opinião que não se é capaz de refutar.
É uma questão de carácter.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

"todo o amor que sentimos cá dentro"

A propósito da citação feita por uma amiga, de uma frase de Truman Capote, que dizia ''Todo o amor que sentimos cá dentro é natural e belo, só os hipócritas é que censuram uma pessoa por amar.'', poder-se-ia considerar o seguinte:
Nem todo o amor é natural e belo (será necessário apresentar disso exemplos?...), e há formas de amar censuráveis. Inclusive, não estou seguro de que se não tenham cometido mais atrocidades em nome do amor do que, por exemplo, em nome da religião, sendo que este último caso está, de certa forma e na minha opinião, contido no primeiro.
O que é o amor? Em que consiste a tradução prática desse termo para cada um dos indivíduos? - Diz-me como vives um sentimento (como é influenciado o teu comportamento por determinado sentimento), e eu poderei dizer-te quem és. Diz-me somente o que sentes, e eu dir-te-ei quem és ou não.
A única forma de aquela ser uma afirmação válida, é assumir que o autor define amor como sendo algo diferente daquilo que sentem os que cometem crimes e atrocidades em seu nome.
Ao tentar fazer um discurso perfeitamente identificável, que procura incluir as formas marginais (na época) de amor na esfera da "normalidade" (e subscrevo obviamente o elogio do amor enquanto pura dádiva mútua entre dois seres humanos, livres e auto-determinados, que assim se unificam), o autor desconsidera o erro de poder chamar pelo mesmo nome atitudes que fomentam consequências completamente opostas, fazendo depender da genuinidade do sentimento a sua legitimidade. Nada mais errado e perigoso.
Em nome do amor já se cometeram violações e destruíram vidas. Será no entanto isso para si ou para mim amor? Não.
Em nome do amor conjugal, parental, nacionalista,  corporativista, já se cometeram homicídios e genocídios, perseguições e destruições. Será isso para si ou para mim amor? Não.
Há formas de amar (ou o que se possa chamar a esse sentimento) que necessitam da servidão do objecto amado para poderem alimentar as necessidades de quem "ama". Será isso amor?...
Por isso, nem "todo o amor que sentimos cá dentro" é necessariamente digno do nome e de ser aceite pelos outros, seus destinatários ou não. O epíteto amor não é uma lixívia moral que branqueie maus sentimentos, defeitos de carácter ou vícios de personalidade.

O ser humano terá que adquirir a mestria em lidar com a ideia de poder, seu desejo e exercício - o maior desígnio humano e único verdadeiramente libertador e precursor da evolução da nossa condição. Só depois se poderá moderadamente auto-elogiar, e aos seus sentimentos. Antes desse dia, estará a alternar os auto-elogios com as guerras, injustiças e desumanidade que fomenta em nome, por exemplo, do amor, que nestes casos não é mais do que o nome do(s) próprio(s).

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Machina


A ti,
Aos teus propósitos ocultos, despidos em teus próprios olhos.
Ao que a artificialidade da tua vi(n)da me revelou de genuíno acerca dos teus amores.
Ao que as tuas tarefas te fazem calar, e os teus silêncios sentir.

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máquina s. f.: Aparelho destinado a produzir movimentos ou a transformar determinada forma de energia; Instrumento ou aparelho formado de peças móveis; Fig. Obra grandiosa e reveladora de génio; Conjunto de meios, órgãos e serviços que constituem determinada estrutura ou organização; Pessoa que só faz o que lhe dizem; Autómato, Robô, Computador.



Da líbido, a máquina

Um amor de morte. Há duas semanas atrás tive a oportunidade de conversar relaxadamente com uma amiga. E entre o muito do que foi falado, acabámos por abordar temas correntes, publicados e publicáveis. Aflorámos, entre outras questões, o holocausto de dimensão familiar, quotidiano, que por vezes faz notícia, e foi aí que acabámos por desaguar na bestialidade, na faceta reptiliana (límbica, hipotalâmica, inconsciente, amoral; aquela que a presença de uma auto-consciência e formação ética efectivas permitem desejavelmente adestrar em nós) que subjaz ao holocáustico - aquilo que não nos recorda a parcela de nós próprios, de todos nós, presente nos acontecimentos. Quer por participação, quer por omissão. Falámos de um impressionante crime ocorrido muito próximo, tendo essa proximidade múltiplas acepções: temporal, espacial, e proximidade de latência ou potencial, na medida em que cada um de nós não tem eventualmente capacidade de prever o que a realidade ou as pessoas que sempre (des)conheceu podem vir a proporcionar.
Há quem diga que a nossa única e verdadeira família são os nossos filhos. Porque nenhum outro laço é estabelecido e escolhido como esse. E porque, não poucas vezes, os sistemas pantanosos onde se pode vir a nascer ou crescer recordam não menos do que isso. Por vezes a família precisa mais do que ama. Por vezes os laços não unem, mas apertam. Até à morte se necessário for. A amar (precisar) de forma ínvia e, na inviabilidade de um amor saudável, a procurar tornar ínvio o alcance dos outros ao objecto em que doentiamente se fixa. Forçando mudanças ou, quando estas não podem ter lugar, tentando "depurar" através da dor quem doentiamente se "ama", de quem, no fundo, doentiamente se precisa. Uma monstruosidade? É. E não é argumento de romance policial. Acontece na realidade. Podendo atravessar todo o universo relacional, para lá da formalidade e da aparência de normalidade que, quando não traduz a genuinidade de laços mantidos de forma saudável, procura dourar uma aparência exteriorizável dos mesmos, ocultando a viciosa disfuncionalidade em que consistem. É a necessidade sobreposta ao amor desinteressado. Machina ex libitum. O nosso sistema límbico, o nosso reptilário monstro privado, em roda livre.
Num momento disruptivo, comete um filicídio. Podia ter desistido de tudo, zangado, em negação solitária. Podia ter partido, virado costas determinada e irreversivelmente; sem desistir de si próprio, dar fôlego a novos princípios. Muitas podiam ter sido as inconscientes ritualizações que a si próprio se teria dado num exorcismo apaziguador da própria angústia, do fim do seu casamento, daquela constelação familiar (não necessariamente daquela família), daquele capítulo da vida. Mas, na disrupção, não foi a loucura - com as suas larguíssimas costas - que decidiu. Porque a verdade é que a grande parte do que se aponta como loucura não é senão o local onde fica quem perdeu tudo excepto a razão, uma terra de ninguém reservada aos destituídos do direito à sua humanidade. Foi o sistema límbico, a base de amores e ódios em estado cru, a posse, a territorialidade, a representação da disseminação genética encapsulada na reprodução e no sexo, traduzidos no desejo insaciável de poder. Foi o legado reptiliano a funcionar. O que assedia, territorial, levanta falso testemunho, perjura, acriticamente, destrói. O réptil em nós. É esse monstro hipotalâmico, e não a loucura, que puxa gatilhos, manipula medos, movido por pulsões sublimadas. Terá sido esse a matar naquele dia. É esse que mata. O amor, mais do que pela própria filiação, por uma criança inocente, não esteve nesse lugar. Esteve a besta territorial que albergamos profundamente. Essa caldeira inconsciente que constitui a permanente sustentação energética e motivacional do ser no estar. O sentimento de apropriação dirigido ao próximo, a uma criança, à própria descendência, que na impossibilidade de fazer reaver a parte que era sua numa construção que estava a ser retirada da sua esfera de intervenção habitual, preferiu destruí-la a imagina-la a ter uma vida e singrar independentemente de si ou da sua influência. O que simbolicamente o representa como parte de uma união que se desfaz (desde uma aliança ou uma habitação, até aos filhos), paga a factura dessa moção pulsional. Não a podia ter: destruiu-a.
No sentimento inerente ao crime, materializado ou não: o réptil pulsional e ancestral a preponderar. No constrangimento de toda essa disposição, simultaneamente de vida e de morte (tal como podem ser as pulsões), no respeito pela vida e na negação do abuso de poder e de apropriação: a ética, o pensar sobre o agir que impomos a nós próprios.
Mas longe deste discernimento, e longe também do diametralmente oposto lugar da perplexidade que segue epílogos trágicos, acompanhada dos nossos esgares aparvoados, quando confrontados com a violação ou assassínio de alguém por parte de presumíveis insuspeitos, para lá dessa lonjura, fica a loucura, essa sim, do vulgo senso e o conforto pela existência desse lugar paradoxal onde, em girândolas de lugares comuns e abusos de terminologia, afinal fazendo justiça ao epíteto, se inocentam culpados e "purificam" inocentes piamente executados.
O drama real dos actos concretos é somente a ponta do iceberg criminoso. Porque a fronteira que distingue a 'verdade do ser' da 'artificialidade do parecer', que se revela nas entrelinhas da vida quotidiana, está no grosso oculto dessa massa gigantesca, silenciosa, dentro de cada um.

Não somos deuses perfeitos. Nem a culpa dos nossos actos, por muito enraizados que estejamos numa condição inconsciente, pode ficar imputada a essa imperfeita circunstância. Precisamos da ética precisamente porque não somos perfeitos. Precisamos dela a partir do ponto em que não fazem sentido as leis, e a partir da certeza de que a razão não é (só) verbo, mas vida, sua compreensão multifactorial e verdadeiro conhecimento daquilo que é a realidade, muito para além do aparente, muito para além do imediatamente alcançável, e de que a legalidade não implica necessariamente razoabilidade (1). Precisaremos sempre dela, mesmo quando percebermos que o tal caminho de busca do equilíbrio, uma constante procura consciente de uma homeostasia vivencial, essa forma contemplativa ou meditativa de nós próprios sobre nós próprios, é a única forma imaginável ou não imaginável de progresso humano. Não há outra. Não se forcem, por isso, mudanças biológicas no humano. Mude-se, sim, a forma como o humano se pensa, para que pense. Nada que não esteja ao nosso alcance.
P. Marivaux escreveu: "o casamento que se faz entre os homens e nós deveria fazer-se entre os seus pensamentos e os nossos; era essa a intenção dos deuses; ela não foi concretizada e aí está a origem da imperfeição das leis". Contudo, ainda assim, deuses não fôramos, feitos à medida do que para nós próprios projectássemos enquanto insaciável animal cultural, como máquinas de nós mesmos. Pois, mais uma vez, é na "imitação" dos exemplos equilibrantes da natureza, na aproximação a si, e não na engenharia artificializante do humano, que a nossa verdadeira felicidade pode radicar.


Da máquina, o criador

Ao projectarmos sobre nós próprios um ímpeto criacionista, variamos no que tem sido ao longo de décadas uma das mais promissoras e ensaiadas aspirações humanas - a inteligência artificial.
Máquina e humano, criatura e criador. Num reflexo reentrante em que a máquina que albergamos, libidinal, se recapitula na máquina criada através das parcas possibilidades de uma consciência engenhada.
Ironicamente, de um patamar onde ainda não conseguiu, de forma sustentada, aproveitar integralmente as possibilidades que a sua consciência alargada e o seu "si autobiográfico" (no seguimento de A. Damásio) lhe proporcionam relativamente à sua própria evolução, o humano decide criar(-se).

Já íamos no carro quando a questão da bestialidade maquinal humana, a máquina libidinal que somos, desaguou no brilhante filme de S. Spielberg, Inteligência Artificial, que poderia ser, de entre as várias abordagens que sugere, a história do nosso entendimento acerca do nosso papel criacionista, bem como uma introdução às diferenças e semelhanças entre ser humano e ser máquina, entre ser consciente e estar ligado. Ou, porque não, a de ter consciência e ser consciência, observando-nos através dos olhos do criador que fôssemos. E, curiosamente, o lugar onde se encontrariam ambas as condições: o lugar onde homem e criação poderiam também ser linearmente comparáveis. (2)
O filme relata o percurso de uma criança-máquina feita para amar, de forma indefectível. Logo, defectível. Logo, perfeita demais para a realidade ou desadequadamente "perfeita". Logo, imperfeita porque incapaz de amar sem defeito ou para além de uma directriz. Porque amar com humanidade será certamente amar conjuntos e não aspectos. Amar verdadeiramente deve implicar amar defeitos (obviamente, com a salvaguarda das incompatibilidades de conciliação difícil ou impossível, nomeadamente em relação a quem ama doentiamente. Esta nota é uma ressalva que me parece óbvia, mas que no entanto aqui fica.). Ser sensível àquele travo agreste, aprazível e exaltante de amar os defeitos e as diferenças de quem escolhemos, como também o próprio sexo se sente no paradoxo do prazer pungente. Ser esta complexidade que somos, humanos, capazes desse prazer, do de fumar um bom cachimbo ou beber um bom whisky. Da mesma forma que não é possível ser feliz sem sofrer, não é possível amar sem defeito(s). De outra forma seria o próprio amor um defeito em si, só suportável por quem fosse desenhado de raiz exclusivamente para amar. Imperfeito.
Também, por outro lado, só uma complexa máquina como a nossa é capaz do prazer no abuso sexual de uma criança, do prazer com o sofrimento alheio. Para além dos expedientes e instrumentalizações para a satisfação de necessidades, quantas vezes ilegítimas, somos capazes de fazer desse exercício um objecto libidinal, substituindo (mais do que sublimando) tais endo-ocorrências na expressão aberta que mais ou menos conscientemente retrospectivamos com roupagens de valores superiores - sublimes. Da traição, da conjura (desde conspirações globais às conspiratas de botequim), da torpeza do sentimento vingativo (que não é necessariamente o mesmo que vingança). A mesma líbido dirigida a objectos diferentes. A mesma homeostática fobia do vazio, a mesma energia nos diferentes edifícios psíquicos que são cada um de nós. Move-nos a todos a mesma energia, mas movemo-nos, no entanto, todos de forma distinta.
Contudo, as máquinas que a nossa tecnologia alcançará a médio prazo, menos complexas do que as do filme, não estarão certamente embebidas da nossa fereza dragontina, mas estarão aptas para a execução acrítica (na esteira da "banalidade do mal", de H. Arendt). Para o amor acrítico. Aquele que afinal não ama, mas que, programado, induzido, condicionado, sem liberdade, precisa.
Não somos máquinas feitas para amar. Somos máquinas que naturalmente se tornaram amantes e conseguiram fazer assentar na premente necessidade inerente ao amor, em instinto, a capacidade de amar humanamente - com a humanidade que fomos gradualmente conquistando à necessidade. Conviria, contudo, não perder o pé, nem consentir que a nossa tecnologia fumegante encobrisse o brilho da nossa estrela polar, das nossas referências. Para não cairmos na tentação para a qual o filme aqui referido, entre outras brilhantes alegorias e alusões, alerta: tornarmo-nos humanos imperfeitamente ilimitados que constroem máquinas limitadamente perfeitas, sem se conseguirem salvar da própria degenerescência que os extinguiria. Um aviso acerca da imperfeita limitação na recriação do homem por si mesmo. Nesse momento, em que se faz objecto libidinal de si próprio.
Imperfeito é o ser humano, mas é somente com este que podemos e devemos contar. Sem um mundo artificializado, sem um humano artificializado. Mas eticamente formado, e não moralmente formatado, ou formatado para se transfigurar à imagem das diferentes morais que pode ir convenientemente inventando. Para amar mais do que precisar.
Mediante a falácia que resulta das interpretações (libidinalmente) enviesadas do amor agostiniano - "Ama e faz o que quiseres" -, temos a verdade de que o amor per se, declarado, auto-presumido, incondicional, não é condição prévia inquestionável para o bem. Mais certo seria, porventura, dizer: não faças tudo o que quiseres - porque tens a consciência de que, na inacessibilidade cavernosa do teu ser, há o lugar em que o querer e o dever não dialogam, e em que o poder não os distingue - e porventura poderás amar. Porque o valor do amor pondera-se nas suas profundas consequências, e não nas suas presumíveis intenções.

Num epílogo fantástico , assalta-nos a questão sobre se chegaremos aos seres translúcidos, iguais entre si, que visitam o nosso planeta, como nos visitamos hoje a nós próprios quando entramos em cavernas pré-históricas, já consideravelmente diferentes daquilo que fomos no tempo em que as habitámos. Uma coisa é certa: se tivermos hoje o mesmo constrangimento ético com a tecnologia biomédica - a tentação auto-destrutiva dos nossos dias - que tivemos outrora com a tecnologia nuclear bélica, quando vencemos (esperemos que definitivamente) o medo frio da consequência de botões premidos inadvertidamente, aí teremos um futuro liberto, logo, promissor de equilíbrio e de vida. Acima de tudo promissor, porque esse mesmo constrangimento ético que conseguirmos revelar mediante a tentação de afectação do nosso equilíbrio e viabilidade antropobiológicos será o mesmo que terá garantido a nossa emancipação (cultural e educacionalmente mediada) relativamente ao maquinal desejo de poder, propriedade, manipulação, tanto ad homini como eco-direccionado. Quanto à nossa configuração, quanto ao que seremos e como seremos, trata-se de uma obra prima com milénios de elaboração por vir, necessariamente noutras paragens, longe desta estrela efémera e deste sistema imperpétuo. Desta onda de um inenarrável oceano cósmico. Não creio, contudo, que venhamos algum dia a ser todos absolutamente iguais, como espécie, réplicas absolutas uns dos outros, translúcidos, onde consciência e percepção deixariam de ser fenómenos individuais, mas comuns e partilhados como é hoje o fundamento do nosso inconsciente. Porque a única coisa absolutamente igual, porque imutável, na natureza e no universo, é a possibilidade da diferenciação naturalmente determinada.
É por isso ridícula a pretensão de uma certa ala pseudo-científica (Porque, adaptando aqui um adágio de Abel Salazar, quem só sabe ciência nem ciência sabe. Não confundindo, obviamente, tais grupos com as classes científica ou médica em si, em cujo trabalho radica grande parte do que proporciona felicidade e dignidade vivenciais ao ser humano.) de eliminar os géneros em décadas, como já li (já escrevi, aliás, sobre isso abundantemente, tendo cometido porventura, em certo momento, o erro de colar exageradamente um urgente alerta contra essa loucura quotidiana aparelhada de tecnologia biomédica a aspectos de mera organização social, absolutamente inócuos, porque a isso alheios, sublinhe-se, para potenciais degenerescências da espécie humana a longo prazo.). Pretensão tão ridícula quanto perigosa. Porque nada é durável e viável na natureza viva (na qual se inclui o ser humano) que não tenha necessariamente que estar previamente inscrito em si, na sua codificação genética, pela mão da própria natureza. Incluindo, note-se bem, os nosso sonhos.
Na antiguidade, alguns povos tinham o hábito de ligar o corpo das meninas em tenra idade com o intuito de forçar os seus corpos a conservar as formas infantis na idade adulta. Não foi obviamente assim que mudaram o corpo feminino (e nunca devem ter chegado a essa conclusão, pura e simplesmente porque não tinham as condições que temos hoje para concluirmos acerca do que é óbvio, dependendo o carácter do óbvio do nível de influência que tem a já referida moção libidinal no discernimento ou capacidade ética dos sujeitos, quando sabem o que isso quer dizer). Os únicos resultados individuais conseguidos foram o que se pode facilmente imaginar hoje. Não é seguramente através da estética que se muda a humanidade. Nem então com ligaduras, nem hoje com bioquímica. A (mãe) natureza não veste espartilho. Deveríamos saber que nada é perene através da manipulação contínua. Só através do florescimento natural de um percurso biológico que não é feito, mas se faz. Verdade contrária à tal estirpe pseudo-científica, com muitos recursos técnicos, mas sem nenhum escrúpulo ético, que se esconde por trás da doutrina da inevitabilidade voluntarista, esquecendo, ou ignorando, ou silenciando o facto de que as forças auto-concretizáveis e o livre arbítrio humanos, do eu-aqui-agora, são aquilo que deles quisermos fazer, são o que de nós próprios, quisermos, soubermos ou pudermos fazer. Certo é que podemos muito mais do que habitualmente queremos. E por vezes queremos o que não deveríamos.
A autoconsciência, e o conhecimento que esta proporciona, deve servir para acompanhar, compreender, prever, e interferir minimamente - apenas na medida do nosso conforto e dignidade -, mas sem adulterar a globalidade dos sistemas, e muito menos fazer-se substituir à própria lógica dos mesmos.


Do criador, o futuro

No ponto em que estamos parece óbvio (ou talvez não, na medida em que, como já havia escrito, fazer a realidade ver-se ao espelho introduz aquela verdade que referia Agostinho da Silva, e que é o lema deste blog), contudo, que as auto-infligidas manipulações genéticas humanas possam ser inevitáveis (tal como já são correntes manipulações de outra ordem, nomeadamente hormonal), como inevitável será o resultado que daí advier. É prematuro hoje indicar se o resultado será tão mau como se pode intuir. É certo que será efémero, como efémera é a inocente ilusão de uma criança durante uma volta de carrossel. O cosmos é dinâmico e auto-recursivo. Ser vivo implica ser energético, ter líbido (ou outra força análoga a uma mobilização motivacional mais ou menos mecânica, adequada ao género de vida em causa), diferenciar-se em complementaridades binomiais. Onde quer que estejamos, quando quer que estejamos, os valores absolutos de verdadeiro e falso, de verificabilidade ou não verificabilidade de determinada condição (com a lei de terceiro excluído, como na lógica), de presença ou ausência, existirão sempre. Jogamos, por isso, às escondidas com a natureza. Até nos cansarmos. Esperemos profundamente que não se canse a natureza de nós.
Repito: para concluirmos acerca do estado de adolescência moral em que nos encontramos, basta observarmos o paradoxo de produzirmos ciência que se constitui como base de um conhecimento preditivo do real, mas não aplicarmos esse conhecimento ao nosso próprio percurso, tanto colectivo, como de motivação individual - porque não vivemos eticamente, porque confundimos ética com moral. Porque esta sociedade antropocêntrica fez do voluntarismo o seu objecto libidinal. O maquinal desejo de apropriação do próximo redefine-se assim como o maquinal desejo de modificação do próximo, até que nada mais exista para modificar. A tendência humana para a autodestruição é imensa, e não se eliminará através da procura do esgotamento da sua natureza pulsional, da mesma forma que é impossível satisfazer a sede com água do mar. Esperemos que o ser humano do século XXI não faça uma mina de si mesmo, como alternativa ao esgotamento de outros recursos, devorando-se num processo que o torne simultaneamente consumidor e produto de si próprio. Porque chegar-se-ia, por esse caminho, ao ponto de não retorno que seria o momento em que o ser humano já se teria alienado daquilo que o define como humano.
A raiz cultural, a cultura humana, deve servir para aproximar o ser humano da natureza mãe. Não deve servir para se auto-modelar em função das matizes culturais dos tempos.
Como dizia C. Sagan, "The universe is not required to be in perfect harmony with human ambition". A ciência confere indubitavelmente liberdade, e é a melhor ferramenta com que podemos contar. Mas não mais do que isso - uma ferramenta. Da ciência emana conhecimento, mas não o bem. O bem emana do respeito pela vida, desde a renúncia ao abuso do poder, à renúncia a recursos inutilmente acumulados ou consumidos, até ao saber viver em função do equilíbrio matricial de uma natureza que nos deu forma e lugar.
Em vez de construir um caminho equilibrado e em harmonia com aquilo que tem de melhor, potenciando os seus melhores aspectos, o ser humano arrisca-se assim a inventar um sucedâneo de si mesmo: uma máquina feita para amar. Mas o que se percebe é que máquinas não amam. Precisam. Pelo que, em última instância, nem essa possibilidade restará ao engenho final.

Conforta-me e anima-me, em esperança, aquilo que nos distingue: a imperfeição cognitiva, o lapso mnésico, o erro que fertiliza, fazendo-nos mexer nas ideias como se uma colher mexesse um café, dando lugar ao que a imaginação proporciona - novos mundos, novas formas de ver, de pensar, de experimentar - a exponencialidade de um complexo inatingível pelo rigor simplista da inteligência artificial e da condição, não artificial mas artificializante, da subjugação da decisão humana aos seus maquinais monstros internos.


Post Scriptum:
Um ensaio é essencialmente um exercício. Questionante e questionável. E um exercício nunca é o fim em si próprio, mas um caminho. Porventura, o caminho não antes percorrido de um fazedor de mapas.
Questionemo-nos e julguemo-nos a nós próprios, na condição humana falível, mas consciente de si, que partilhamos todos. Perscrutando a terra de que somos feitos. E nesse momento, se ainda não formos, pelos menos estaremos irmãos.

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(1) - O que faz pensar no sistema ultra-legislativo e anti-liberal que mantemos, em detrimento do fomento de uma constituição sucinta que se cumpra efectivamente, apoiada em jurisprudência, como consequência de uma maturidade socio-cultural de um povo que sabe efectivamente lidar com a sua própria liberdade.

(2) - Por um lado, porque a definição de "vida" pode ser discutida depois de nos interrogarmos profundamente acerca das diferenças funcionais entre uma forma de vida que estaria aprioristicamente legitimada por razões de precedência existencial - a nossa - e outra que, a partir de um certo nível exponenciado de complexidade, poderia teoricamente equiparar-se a nós em grau de complexidade e funcionalidade. Quanto ao género, a equiparação decorre da óbvia conclusão a que chegaríamos ao percebermos que não conseguiríamos esgotar a discussão sobre uma definição de "vida" na exploração inconsequente entre biologia e cibernética. Em última instância, vida é sempre vida, matéria é sempre matéria. Restaria a questão das origens, do ovo ou da galinha, o que poderia curiosamente deitar por terra muitas supostas certezas acerca das possibilidades da nossa própria origem, não enquanto espécie, mas enquanto forma de vida. De onde viemos? Porque efectivamente, e para além da análise consubstanciada neste texto à comparação entre o genuíno e o artificial, entre o verdadeiro e o falseado, seria perfeitamente possível que, um dia, uma criação nossa pudesse vir a autonomizar-se, evoluir por si. Surpreendentes ocorrências se dão num estado exponenciado. O estado exponenciado, em tudo, transfere a essência constitutiva, da elementaridade para o todo complexo. Elevados níveis de complexidade, ainda que assentes na mesma elementaridade básica constitutiva, fornecem grandes possibilidades funcionais. Nomeadamente, a matemática e a física demonstram-nos isso. Como uma progressão geométrica que se auto-complexifica na sua estrutura, ao ponto de, na complexidade auto-recursiva, as próprias dinâmicas do todo se constituírem como hiper-estruturas em si, introduzindo possibilidades dentro de possibilidades (É numa malha intrincada engramática que reproduz esse modelo, constituída por neurónios, que se torna possível um epifenómeno que designamos de memória.). Seriamos assim um criador que diferiria da criatura quanto ao género, mas não quanto à condição.
No entanto, e para além destas considerações, e para além da tentação ( também aqui libidinal?) de olhar para os pés de barro de uma cientificidade apaixonada por si mesma, como se estivesse para além do bem e do mal, ou como se achasse possível manter a realidade dentro de um tubo de ensaio durante muito mais tempo, importam outras reflexões, não menos interessantes: se nos dermos o tempo suficiente para meditar, talvez a maior razão de ser de uma qualquer fé não esteja em crenças metafísicas, mas numa crença em nós próprios, auto-contemplativa, de quem se conhece a si próprio. Na de sermos capazes de prescindir de um poder auto-castrante em favor de uma atitude de pacificação para com a natureza. Numa atitude de meditação, e contemplação da nossa posição existencial e ética no enquadramento universal que compomos e de que somos compostos.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Bem-vindos

A voz do intelecto é doce, mas não se cala até ser escutada. E, por fim, após desaires intermináveis, ela atinge os seus objectivos. Este é um dos raros pontos sobre os quais é possível ser-se optimista relativamente ao futuro da humanidade.

(Sigmund Freud, O Futuro de Uma Ilusão)